Escócia
Os céus da Escócia deram um trégua quando visitamos o país de paisagens célticas, até mesmo no centro da cidade de Edimburgo. Confesso que esperávamos outra atmosfera quando chegamos nos jardins da Princes Street. Crianças brincando, cães soltos, gente aproveitando o dia. Dominando a verde paisagem, o Castelo de Edimburgo, inabalável sobre a rocha -- basalto, para ser mais preciso, evidência do que já foi um vulcão um dia. O castelo foi muitas vezes sitiado, como no Cerco de Lang durante a Guerra da Reforma Escocesa. Vencer pela fome e pela sede era mais fácil do que vencer as defesas da fortaleza. Onde hoje ficam os jardins que tanto gostamos, era lugar de um lago malcheiroso, loch Nor, como os escoceses dizem, parte da defesa medieval da fortaleza.
Lá em cima, assistimos ao ritualístico disparo de canhão às 13h. A memória da guerra é muito presente na Escócia – e talvez não tão romântica como em Braveheart. No Museu Nacional da Guerra, que fica no castelo, descobrimos que a Gaita de Fole era usada como instrumento militar. Ouvimos a gaita durante todo o tempo que estivemos em Edimburgo, até num casamento que presenciamos na capela de St. Margaret, o lugar mais antigo da cidade. O instrumento também é muito antigo, citado na história de Sadraque, Mesaque e Abednego, no livro de Daniel: "Quando ouvirdes o som da buzina, do pífaro, da harpa, da sambuca, do saltério, da gaita de foles e de toda sorte de música, vos prostrareis e adorareis a imagem de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado (Dn 3:5, ARC).
Coincidência ou não, a gaita esteve associada ao paganismo durante a Reforma Escocesa no século 16. Um lugar central desse momento foi a Catedral de St. Giles, a primeira igreja presbiteriana do mundo, onde o reformador John Knox foi ministro. Fica na rua mais importante da cidade, Royal Mile, que vai do castelo até o Palácio de Holyroodhouse, residência oficial da Rainha da Escócia. Knox teve que se exilar por um tempo na Suíça por causa da Blood Mary, que forçou o catolicismo no país. Em Genebra, onde é homenageado no Muro dos Reformadores, esteve ao lado de Calvino para depois voltar e liderar a Reforma na Escócia em Edimburgo até o fim de sua vida. No estacionamento atrás da catedral, na vaga de número 23, encontramos uma placa marcando o local aproximado onde foi sepultado no antigo cemitério da igreja.
Andamos mais um pouco pela Royal Mile e chegamos à casa onde Knox morou, hoje um museu. Na verdade, ele residia mais perto do castelo, na longa escadaria da Warriston's Close, onde encontramos uma placa marcando sua casa. Mesmo temporária, a primeira moradia foi a escolhida pela tradição. O museu é dedicado ao reformador e também ao proprietário, o ourives da rainha. Na fachada, lemos em letras douradas: "ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo". Lá dentro, ouvimos a reprodução de uma de suas pregações em uma sala de um belo vitral. Em um dos painéis na parede lemos que a força de Knox, um homem fisicamente fraco, estava em sua pregação.
De fato, Knox foi um líder espiritual do país e confrontou diversas vezes a rainha. Mary, Queen of Scots, chegou a dizer: "tenho mais medo das orações de John Knox do que de todos os exércitos da Europa". Seu legado se expandiu pelo mundo, inclusive para o Brasil. Além de Simonton, quem também tinha raízes presbiterianas e contribuiu para o protestantismo brasileiro foi Robert Kalley. Foi amigo de Dom Pedro II numa época em que o catolicismo era a única religião que poderia ser cultuada publicamente. Kalley está sepultado no Deam Cemetery, perto da bucólica Dean Village. Placas mencionam suas boas obras no Brasil e na Ilha da Madeira, parte de Portugal.
Por mais estranho que seja dizer, achamos os cemitérios muito bonitos. Vimos cruzes celtas de todos os tipos e tamanhos decoradas com arte insular num tom escuro. Esse é o tom da cidade, para falar a verdade. Quase tudo foi construído com sandstone, ou arenito, que com o tempo escureceu. A umidade da chuva, parte permanente da paisagem – segundo nossos padrinhos de casamento que moraram em Glasgow, a média mensal é de 28 dias de chuva –, deixa as pedras brilhantes e mais escuras. É difícil acreditar que monumentos como o Scott já foram claros um dia.
Apesar do tom sombrio, para não falar das histórias de assombrações, isso tem lá sua beleza. Edimburgo serviu de inspiração para J. K. Rowling, por exemplo, que emprestou alguns nomes do cemitério de Greyfriars para escrever Harry Potter. Para quem gosta de escrever, a Caledônia, como os poetas diziam, é uma terra de escritores. A Universidade de Edimburgo, que começou com a faculdade de teologia onde Knox está esculpido, produziu escritores como Sir Arthur Conan Doyle. Vários monumentos pela cidade homenageiam poetas, especialmente no Calton Hill. Ali a vista é belíssima, com várias torres se erguendo da cidade velha.
Outro lugar onde tivemos a chance de ver toda a cidade foi no terraço do Museu Nacional da Escócia, uma maravilha da engenharia inspirada no antigo Palácio de Cristal no Hyde Park de Londres. Um ode à ciência, preservando a memória de Graham Bell, James Watt, e até da ovelha Dolly. Encontramos lá uma geodo de ametista absurdamente enorme cuja origem é o Brasil. Além da poesia e da ciência, a Escócia fez grandes contribuições para a filosofia, principalmente durante o Iluminismo Escocês nas pessoas de David Hume e Adam Smith. Voltaire chegou a colocar o país como modelo a ser seguido.
Lá no terraço, pudemos ver a cidade e suas várias colinas. Edimburgo fica no estuário do rio Forth, no centro do país, assim como Glasgow, a maior cidade da Escócia, voltada para a outra costa, beirando o rio Clyde. As duas principais cidades da Escócia formam um cinturão central onde mora a maioria da população. Ao norte, as highlands; ao sul, lowlands. Highlands possuem as montanhas mais altas da Bretanha, uma fábrica de chuva ao resfriar os ventos úmidos do Atlântico. É um lugar de paisagens incríveis, de rios percorrendo glens verdejantes até lochs cercados de mistério como o Ness. E das vacas. Não poderíamos deixar de ver aquelas vacas. Depois de uma longa caminhada pela fazenda Swanston, atravessando campos de golf e encontrando pôneis pelo caminho, encontramos as charmosas highlands cows, além de uma preciosa vista.
Gostamos muito de caminhar por aqueles pastos verdes. Antes de terminar o dia, ainda visitamos o topo de outra colina. O Arthur's Seat fica no Parque de Holyrood, onde encontramos colinas completamente cobertas de flores amarelas, o tojo. Com a ilustre companhia do sol, subimos uma trilha desafiadora até o topo. Fomos bem recompensados com o pôr-do-sol, a vista para toda a cidade, com o mar ao fundo. Com ela ao meu lado, o dia não poderia ter sido melhor. A cidade com toda sua beleza arquitetônica não consegue bater a paisagem natural ao redor, é incrível.